Primeiro capítulo do livro A menina de Gabrovo


CAPÍTULO 1: O Dilema de Klara
  • Por que Deus é tão mau com a gente, mamãe? - quis saber, assim que acordou, uma menina de cinco anos, após outra noite de febre alta e sucessivas crises de tosse.
O nome dela era Klara. Klara, mesmo tão nova, já conhecia muito bem o gosto amargo que uma vida infeliz pode ter. Doente, não tinha forças para se levantar da cama, nem sair do quarto, e tampouco conseguia se animar para brincar com as amigas das quais não via há um bom tempo.
  • Bom dia, minha princesa. - respondeu, Liza, à filha, cumprimentando-a enquanto dobrava algumas peças de roupa que havia acabado de recolher do varal. A jovem e dedicada mãe fingiu não ter ouvido a pergunta da menina. Pacientemente, antes de deixar o quarto, pediu. - Descanse mais um pouco, por favor. Sim?
Do lado de fora do quarto, no céu da Bulgária via-se um tom doente, frio e cinzento, assim como o restante da paisagem de Gabrovo que não aparentava ser mais saudável do que a menina. A natureza, no entanto, mesmo severamente maltratada pelo clima frio do inverno, consegue ser generosa. No momento em que Liza deixou o quarto, sete passarinhos, cada um de uma cor diferente, pousaram na janela e fizeram, por um mísero instante, os olhos esfumaçados de Klara encherem-se de vida ao vê-los.
  • Bom dia, passarinhos. - em voz quase inaudível, ela os cumprimentou.
Os passarinhos, em resposta, piaram com ternura, arrancando um sorriso da menina, que, pouco tempo depois, voltou a chamar:
  • Mamãe!
  • Sim, querida. - preocupada, Liza retornou apressadamente. E perguntou. - O que houve?
  • Por que Deus é tão mau com a gente, mamãe?
A pergunta fez Liza estremecer de dor.
  • Minha filha, sei que o seu sofrimento não é algo que eu possa abrandar ou até mesmo ignorar. - disse, ela, convicta da bondade de Deus. - Me lembro de ter dito para você descansar. Vamos, feche os olhos e descanse. - voltou a pedir. - Por acaso não está duvidando da bondade de Deus, está? - perguntou, com ligeira incredulidade no que acabara de ouvir. Por fim, Liza respirou fundo e sorriu, limitando-se a responder a pergunta. - Escute atentamente o que eu vou lhe dizer: questionar Deus não é um bom começo para entender o que ele quer da gente.
E fez-lhe carinho no rosto da filha. Sua religiosidade parecia ainda mais inabalável nas horas de maior sofrimento. Somente parecia, porquê Liza não se mostrava pronta para aceitar o sofrimento de Klara de qualquer outra forma se não por uma mera provação divina, um período de dificuldade; dificuldade, essa, que era uma só entre as muitas que ela iria atravessar ao longo da vida e da qual sempre estaria ao lado dela para confortá-la.
  • Tenha fé.
Com a certeza de que não havia sentido algum para tal pergunta, a jovem mãe, então, bufou e se curvou sobre a cama.
  • Tudo vai passar. - disse, beijando-a na testa, e, mais uma vez, pediu. - Agora descanse, meu anjo.
Klara não protestou, fechou os olhos. Porém, antes mesmo que Liza chegasse na porta do quarto e voltasse aos seus afazeres, pediu:
  • Me conta uma história.
  • Uma história, mas o dia nem amanheceu. - Liza virou-se para a filha, estreitando os olhos. - As melhores histórias só são contadas de noite para a gente ter bons sonhos. - disse, amorosamente, em tom de fantasia.
  • Por favor. - com a voz rouca, Klara insistiu.
Se Liza podia ser considerada uma sólida e intransponível fortaleza, a menina, por sua vez, também era um oceano de doçura e persistência, cuja as ondas têm o poder de penetrar quaisquer muralhas. Não resistiu ao sorriso de Klara.
Perguntou:
  • Qual história você quer?
  • Aquela da montanha. - respondeu, a menina, antes de um acesso de tosse. Conhecia a história, mas pouco se lembrava dela. - Mamãe, o que eles eram mesmo? - perguntou, referindo-se aos personagens da história.
  • Ciganos. - respondeu, Liza. - Eles eram anjos ciganos.
  • E existem anjos ciganos, mamãe?
  • Sim, minha princesa. - respondeu à menina. - Eles existem.
Deitou-se, então, ao lado da filha e, penteando com os dedos seus cabelos encaracolados, começou a contar a história:
  • Havia uma montanha majestosamente cheia de vida. Ela era tão grande e tinha tantas árvores que só se podia vê-la, por inteiro, de muito longe.
Imediatamente após começar a contar a história, Klara fechou os olhos e foi imaginando a montanha, os anjos, as árvores e tudo o mais que julgava caber nela. Com os olhos fechados e o coração totalmente aberto, a menina de Gabrovo viu-se saudável, livre da peste cinzenta que a fazia sofrer, e o ar preenchia seus pulmõezinhos com incrível facilidade.
  • Dizem que a montanha foi oferecida, por Deus, em resposta à bondade dos homens. - Liza prosseguiu. - No alto dela, bem perto do céu, os anjos ergueram um acampamento e não havia um só dia em que os anjos não dessem banquetes e não festejassem a vida...
  • E Deus? - ainda com os olhos fechados, a pequena interrompeu a história.
Sem entender a pergunta, Liza a encarou.
  • O que tem, Ele?
  • Deus também mora, com os anjos, na montanha? - perguntou, Klara.
  • Deus vivendo num acampamento! - a jovem mãe exclamou e fez uma careta, arregalando os olhos. - Sim, querida. - respondeu, levantando-se da cama. Logo em seguida, antes de voltar a deixar o quarto, beijou a filha no rosto e perguntou. - Onde mais Ele moraria, senão com os anjos?
Klara, logo em seguida, se apressou em pedir:
  • Mamãe, me conta outra história.
  • Sinto muito, mas já chega de histórias. - firmemente, Liza negou o pedido, explicando. - Tenho muito serviço para fazer na cozinha e você precisa descansar.
A jovem mãe deixou o quarto e Klara, então, em meio aos acessos de tosse que a afligia, fechou os olhos e forçou-se a dormir.